Enquanto os icônicos prédios modernistas do Plano Piloto eram erguidos em Brasília, um grupo de mulheres negras emergia como força vital na luta por direitos políticos, melhores condições de vida e reconhecimento em uma cidade que historicamente as marginalizava. O dossiê “O lugar das mulheres pretas na construção de Brasília nas décadas de 70, 80 e 90”, iniciativa do Núcleo de Arte do Centro-Oeste (Naco) e coordenado pela consultora chilena Paloma Elizabeth Morales Arteaga, reúne relatos de sete dessas lideranças, baseados em entrevistas e pesquisas em documentos raros do Arquivo Público do Distrito Federal. Paloma destaca a contradição de um país majoritariamente negro, como observado em viagens à Bahia e ao Rio de Janeiro, onde a população negra predomina nas ruas, mas enfrenta ausência de reconhecimento e oportunidades. Entre as narradoras está a jornalista Jacira da Silva, de 74 anos, que chegou à capital em 1960, aos 9 anos, vinda do Rio de Janeiro com o pai carteiro. Ela descreve a segregação espacial da nova capital, citando o geógrafo Milton Santos para explicar como a geografia serviu de instrumento de separação, afastando pessoas negras e trabalhadoras para periferias como Ceilândia e Taguatinga, em contraste com a propaganda de uma cidade ideal que prometia casa, comida e moradia para todos.
A politização de Jacira ganhou força na adolescência, durante a Ditadura Militar, morando próximo à Universidade de Brasília (UnB), onde presenciou racionamentos de alimentos e manifestações. Sua entrada no Movimento Negro Unificado do Distrito Federal (MNUDF) ocorreu em 1981, após atuação no Centro de Estudos Afro-Brasileiros (CEAB), focando em cultura e educação para desmascarar o mito da democracia racial. Jacira relata o desafio de ser respeitada como mulher negra nos movimentos, demorando para que colegas ativistas a vissem como igual em debates e negociações. O dossiê também traz vozes como a de Maria Luiza Júnior, fundadora do MNU-DF, que critica o Instituto Nacional Afro-Brasileiro (INABRA) por seu foco em um modelo de “negro bem-sucedido” que excluía muitos, e enfatiza o MNU como meio de manter viva a juventude negra. Já a assistente social Cristina Guimarães aponta as limitações do feminismo hegemônico, que ignorava experiências de mulheres negras, indígenas e trabalhadoras domésticas, levando à criação do Encontro Nacional de Mulheres Negras em 1988. Esse evento, coincidente com a Constituinte e o centenário da abolição, gerou resistência em movimentos estabelecidos, mas impulsionou organizações como o Coletivo de Mulheres Negras do DF, Criola no Rio de Janeiro, Geledés em São Paulo e o grupo Mãe Andresa no Maranhão, fortalecendo a denúncia contínua contra o racismo.
Essas narrativas evidenciam como o ativismo dessas mulheres contribuiu para o processo de redemocratização, questionando a “falsa abolição” e promovendo marchas e mobilizações que moldaram o debate político no Distrito Federal e no Brasil, destacando a persistência da luta por equidade em uma nação marcada pela desigualdade racial.